21 agosto 2010

Artigo: A Trilogia das Cores de Krzystof Kieslowski

Depois do ensaio metafísico "A Dupla Vida de Verónique", o polonês Krzysztof Kieslowski deixou meio mundo a seus pés com um projeto ambicioso e ao mesmo tempo absolutamente simples. A sua "Trilogia das Cores" surgiu em meados dos anos 90 como um grito quase silencioso de que ainda havia lugar para a poesia, a beleza e a emoção no cinema. Dominada pelo frenético e muitas vezes descartável cinema americano, a década de 90 experimentou um novo modelo que não só reabilitou o cinema europeu mas também provou que o realismo, o drama humano e a sensibilidade do artista ainda podiam falar mais alto do que filmes baseados em orçamentos milionários e toneladas de tecnologias. Inspirada não só nas cores da bandeira da França, mas também nos lemas da Revolução Francesa, a sua trilogia podia ser vista como um ensaio, um reflexo da visão pessoal do cineasta polonês com relação aos processos da unificação européia da época, tanto econômica quanto política. Por isso, deve ser vista na íntegra, e na sequência original, em que, como uma peça em três atos aparentemente distintos mas que se complementam no fim, os três filmes apresentam personagens que protagonizam cada um dos filmes individualmente, mas interagem ao longo da trilogia, até o final arrebatador, em que serão reunidos por conta de uma tragédia com implicações simbólicas e até mesmo como metáfora da situação política da Europa refletida pela ótica do próprio Kieslowski. Diretor de dramas pesados e initimistas, Kieslowiski adotou uma nova filosofia a partir do "Decálogo" no final dos anos 80, e a sua trilogia de cores representa o amadurecimento de seu cinema, a combinação de poesia e sensibilidade e o uso de personagens comuns como símbolos universais. Cada núcleo de história é diferente dos demais, abrangendo os lemas um de cada vez e de forma individualizada. Assim, "A Liberdade é Azul", "A Igualdade é Branca" e "A Fraternidade é Vermelha", mas na visão do maior cineasta polonês desde Polasnki, tudo isso ganha um sentido mais abrangente.

Em "A Liberdade é Azul", o clima predominante é o de tragédia. Bela modelo tenta o suicídio após a morte do marido e da filha num acidente de carro. Frustrada na sua tentativa, ela redescobre um novo sentido para a vida e leva adiante o projeto do marido, que era compositor: um concerto sinfônico comemorativo da unificação da Europa. Vencedor do Leão de Ouro em Veneza, o filme aborda a tragédia pessoal para criar um roteiro envolvente, carregado de implicações existenciais e emoções intensas. O ritmo lento, aparentemente pesado do diretor acentua de tal forma o drama da personagem que o azul predominante na fotografia se torna reflexo da sua tristeza, que beira a depressão, a solidão e a amargura. Permite também à atriz Juliette Binoche uma atuação arrebatadora. A trilha sonora é uma das maiores composições já feitas pelo músico Zbigniew Preisner, habitual colaborador do cineasta.




Em "A Igualdade é Branca", os desígnios do coração movem os desejos de vingança de um humilde polonês que volta à terra natal numa mala de viagem, enriquece e arma um plano sofisticado para se vingar da esposa, que o humilhou em Paris. Mergulhando fundo na alma humana, nos sentimentos de vingança e paixão, o cineasta constrói um conto de fadas às avessas, cínico e até mesmo cruel quando explora os sentimentos mais recônditos do ser humano, frutos do desprezo e da traição que experimentam. Tanto quanto os desejos de vingança do cabeleireiro que se torna milionário graças a métodos ilícitos, a direção sombria de Kieslowski constrói um filme seco, tão árido na emoção quanto as paisagens geladas de Varsóvia, local onde se passa a história. O frio da paisagem e a frieza dos personagens emprestam o tom à fotografia, caracterizando o vazio e o pessimismo, e a noção de que os fins justificam os meios. A igualdade de direitos do cidadão, segundo a visão de Kieslowiski, assume ares sombrios e cínicos.




Em "A Fraternidade é Vermelha", Kieslowiski surpreende já no início do filme, usando de efeitos especiais para mostrar, através dos cabos telefônicos, o trajeto de uma ligação que esbarra num telefone ocupado. É a dificuldade de comunicação entre os seres humanos em nossa época, simbolizada no sinal de ocupado de um telefone, mas também refletido no relacionamento que surge entre uma solitária modelo que vive em Genebra e um juiz aposentado e desiludido que vive recluso em casa, espionando os vizinhos través de escutas telefônicas. Incapazes de estabelecer uma comunicação a princípio, a insistência dela acaba, aos poucos, transformando a visão dele sobre si próprio, a vida e as pessoas à sua volta. A fraternidade, segundo Kieslowski, está no poder que cada ser humano tem de interferir na vida de seu próximo através da co-existência, do sentido de agir ou de não-agir, na cumplicidade do simples ato de existir. O vermelho, mais presente do que o azul e o branco nos filmes anteriores, é a chama capaz de reacender a esperança diante de um novo tempo, simbolizado na cadela grávida e nos personagens que sobrevivem a um naufrágio.

Assim, ao final da trilogia, Kieslowski emenda as pontas soltas de seus dois filmes anteriores, reúne seus personagen em torno de um argumento único e concretiza de forma simpática, otimista e irônica a sua fé no ser humano e na unificação da Europa. Cada um dos filmes se baseia num jogo de interpretações entre um casal - a viúva e o amigo do casal em "Bleu", o marido polonês e a esposa francesa em "Blanc" e a modelo Valentine e o juiz aposentado de "Rouge" -, e no carisma e no talento de três atrizes que estão entre as mais talentosas surgidas nos anos 90: Juliette Binoche, Julie Delpy e Irene Jacob. A luminosidade dessas atrizes, além de toda a beleza que permeia a obra de Kieslowski, é responsável em grande parte pela força arrebatadora de sua trilogia, somada à direção de fotografia e à trilha sonora. A direção inspirada conduz o espectador por um profundo mergulho na alma de seus personagens, um estudo psicológico brilhante, marcado por momentos de rara poesia que somente os grandes diretores conseguem extrair de acontecimentos banais do cotidiano e a partir deles construir um painel sensível e significativo da condição humana. Seja no reencontro à distância do casal ao final de "Blanc", seja no encontro entre Valentine e o juiz vivido por Jean-Louis Trintignant em "Rouge", o resultado é sublime. Parece que Kieslowski percebeu que "Rouge" era o momento maior de sua carreira e talvez acreditando que não poderia superá-lo, decidiu abandonar a direção. A sua morte, pouco tempo depois, em 1996, deixou uma enorme lacuna nas páginas da cinematografia, difícil de ser preenchida.


Texto adaptado do site Cult Movies.

1 comentários:

Anônimo disse...

Eu assisti à trilogia e pouco tempo depois me deparei com 21 gramas. A minha leitura permite associar "bleu" a "21 gramas". Muitos elementos do primeiro filme estão neste último. Seria isso uma homenagem?

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